domingo, setembro 30, 2012

O colecionador de dores


Existia algures, num tempo distante, numa vila sombria, um senhor que vivia num castelo de pedra cinzento. O senhor em causa era pouco dado a cumprimentos na rua, não porque fosse especialmente desprezível ou desagradável, no entanto, essa era a forma habitual como lidava com os habitantes da aldeia.
Um dia, ao observar o mundo exterior através de uma das suas janelas escondidas, visualizou um pássaro do tamanho de um ogre. O pássaro voou na direção deste senhor até que os seus olhos fixaram o interior do castelo. Logo de seguida, voou pela janela dentro.

O senhor ficou petrificado com tal fenómeno, não conseguiu mover-se do canto da sala. O pássaro andou então três passos à frente dele, depois virou a cabeça e disse-lhe:

- Não me digas que nunca viste um Moromo?

O senhor pouco depois balbuciou:

- N...... não!!! Tu és um pássaro falante? Já tinha ouvido falar da tua espécie, mas não. Nunca tinha visto alguém... algo como tu.
- Pois bem. Chegou a tua vez de nos conheceres. Nós vamos em breve frequentar a vossa vila. Faz parte do nosso ciclo de migrações.

Dito isto, olhou para a direita e verificou que existia um corredor escuro. Avançou para o corredor, mas o senhor gritou-lhe:

- Espera!! Não avances para esse corredor, a saída é mesmo por esta janela!

Estava de facto, em pânico, porque há cerca de dez anos que ninguém cruzava o caminho daquele corredor. O pássaro entretanto, ignorou a recomendação dada e avançou. Calmamente, começou a olhar para as paredes e verificou que as mesmas possuíam quadros expostos com caras humanas sofredoras. Cada quadro possuía um ambiente diferente, no entanto, o motivo e o tema dos quadros era sempre o mesmo.

- Tens um gosto um pouco duvidoso, ó marmanjo... - ironizou o pássaro.
- É a minha coleção mais importante. A minha coleção de dores, para não me esquecer de quem tanto mal me fez. Para me lembrar sempre que aquilo a que chamam de amor é asco, lixo orgânico, desperdício.
Este quadro aqui à tua frente, por exemplo, simboliza a dor que um dia uma mulher me causou, ao trocar-me por outro homem. Este aqui à tua direita, simboliza a dor que outra mulher me causou, ao desprezar-me um dia numa festa. 

O pássaro sentiu-se repentinamente mal e encostou-se num canto. 

- Desculpa, senti-me mal, não sei o que se passou. Mas espera, como podes imortalizar essas dores em quadros que vês todos os dias?
- Não percebeste, - disse o senhor - esta exposição de dores ajuda-me a levantar todos os dias da cama, a conseguir encarar o mundo exterior. Nunca mais permitirei que alguém entre em minha casa, porque frequentes foram as vezes em que esqueci o passado para depois me arrepender. Não! Quero estas dores presentes em mim, presentes em minha casa, nas minhas paredes, para que nunca me esqueça do quanto sofri e fui ingénuo.

O pássaro por sua vez, retorquiu:

- Tolo! Esqueces-te dos ensinamentos de Motodon, o nosso mestre! Esqueces-te de que, enquanto sofreste, também conheceste o amor, também dançaste, também sorriste! Esqueces-te de que ao sofrer, estavas a ser obrigado a mudar, a desenvolver características em ti que de outra forma nunca irias desenvolver! Esqueces-te de que cada sofrimento é uma fonte de conhecimento. Herege! Devia matar-te já aqui por renegares a Vida que te foi dada e a oportunidade que tiveste de poder adorar o deus Sol! No entanto, apelarei ao meu Ari* interior e não te farei mal. 

Dito isto, abriu asas e voou por cima do senhor, que caiu com a impetuosidade do salto, e saiu pela janela.

*Ari = Espécie de Guia

sábado, setembro 29, 2012


Existe uma ponte entre nós
...de papel

Que não te surpreenda que o vento seja ensurdecedor
E nos atire para baixo